domingo, 5 de janeiro de 2014

Sobre ser gamer





Eu achava que não era gamer. Ai um dia meu companheiro, que é um cara muito preza, e meu parceiro de nerdices faz tanto tempo que até perco a conta, me disse algo que pode parecer idiota, mas foi importantíssimo: o que importa não é o quanto é difícil: o que importa é se divertir. E que a maioria das pessoas que jogam não jogam tão bem assim. Elas só não assumem isso. 

Eu fiquei pasma olhando para a tela, para o controle do PS3 na minha mão, e pensando em como eu podia ter comprado uma ideia tão babaca - de que eu era menos gamer só porque sou RUIM de verdade jogando. (porque essa é uma mentira que repetem para a gente até a gente acreditar - especialmente quando se é mulher).

E eu parei de encanar e comecei a aproveitar o passeio.

De repente, no meu currículo nerd, eu passei a incluir que sim, sou gamer. Nunca fechei o Sonic do meu Master System, e não tenho tempo para jogar um décimo do que eu gostaria. Mas passo horas discutindo as narrativas de jogos (e sim, eu escolho meus jogos pela narrativa, e não, isso não torna esses jogos melhores ou piores, só os torna os jogos que eu gosto). Não consigo achievements legais no Steam (dois anos de conta e ainda no level 3). Mas eu consigo acertar o smoker toda vez que ele me pega no Left4Dead, e passei tantas madrugadas jogando que uma hora eu comecei a acertar mais os zumbis do que meus amigos, e fora do mundo virtual fazem piadas sobre como todo smoker em cem quilômetros vai atacar meu char porque eu sou uma chaminé de tabaco são uma constante. E joguei tantas horas de Enduro que isso devia ter me rendido um bônus na hora de tirar carteira de motorista (oi Luana!). E eu posso discutir detalhes obscuros de games que acho interessantes e te dar uma aula sobre a Poison, porque bom, ela é a Poison.

Acima de tudo, eu percebi que existe também uma questão de acessibilidade.

Eu tenho disgrafia. E o que isso significa, além de eu ter uma letra feia do inferno e escrever tão devagar que irrita as pessoas (e que sinceramente me impede de ter um aproveitamento real do ato de escrever se eu não tiver um teclado), é que por "dificuldade de integração visual-motora" você pode entender que fazer com que as minhas mãos obedeçam o que meu cérebro diz que eu deveria fazer, seja um head shot claro na tela ou me localizar em um mapa, é mais difícil do que para quem não tem essa dificuldade.

Então, o modo easy é mais difícil para mim do que para você, cara pálida, que tem os músculos da mão e o cérebro trabalhando em sintonia. O meu modo de jogo é quase sempre um nível mais difícil do que está escrito na tela, porque eu tenho um desafio extra: lidar com o fato de que a minha coordenação motora está lutando contra mim (exceto jogos que não exigem esse tipo de coordenação, como RPGs de combate por turno, que eu jogo numa boa).

Claro que eu sou tão cagada que adoro jogo de tiro em primeira pessoa, onde essa dificuldade é mais perceptível. O que me leva ao meu passado com um lança chamas em Return to Castle Wolfenstein (quem precisa de mira? eu vou tacar fogo em metade do cenário e foda-se =^_^= ). 

Não existe uma grande preocupação dos games, especialmente os mais mainstream, de ser acessível. Minha disgrafia é só um detalhe em um universo de outras dificuldades muito maiores que as pessoas enfrentam e que nem por isso deveriam impedir que elas se divirtam com jogos ou se identifiquem como jogadores.Mas de variantes de daltonismo a surdez, a falta de acessibilidade dos jogos é algo invisível para quem não passa por isso.

E eu mesma só me dei conta de que minha "inabilidade" na verdade é um reflexo da minha dificuldade motora muito recentemente. Afinal, a culpa de ser ruim jogando era minha e só minha...

O fato é que mesmo continuando difícil, eu passei a me divertir muito mais quando parei de me culpar e assumi que ok, faço o melhor possível com o pouco tempo que tenho para treinar e os músculos que tenho nas mãos. E por outro lado - que exercício ótimo para melhorar minha relação com a disgrafia que é jogar! É um exercício que eu faço sem perceber - o que nos leva ao potencial terapêutico e pedagógico dos games, que eu vou discutir com mais atenção outro dia. Estou de férias, afinal.

Eu escuto muita gente dizendo que não gosta de rótulos e que mimimi. Eu gosto de identidades, porque em um mundo onde tudo é feito para obliterar sua individualidade, especialmente uma individualidade que não se adequa ao que todo mundo faz igualzinho, esses títulos são pontos de apoio que ajudam a gente se se impor. Nomear nossas identidades é um exercício de auto-afirmação e uma forma de expor ao mundo que existimos.

Quando eu digo que sou gamer, eu crio um elo com aqueles meus alunos que descobrem que podem discutir mods de Minecraft comigo - o que me faz um adulto muito mais confiável e ajuda barbaramente nossa relação. Quando digo que sim, sou mulher e gamer, eu transformo isso em um ato político e de afirmação de gênero.

Existe uma linha muito tênue entre "eu não gosto de rótulos somos todos humanos" e a negação de identidades dissonantes. Então, sim, eu assumi também esse rótulo (assim como assumi o rótulo de nerd) porque vivo em um mundo onde antes de ser lida como humana, sou lida como mulher, sou lida como branca (mesmo não sendo), sou lida como nerd, sou lida como queer, sou lida como N coisas.

E os games estão ai. Expondo ou colaborando com as construções sociais.

Então sim, eu sou gamer. E tenho orgulho disso.



foto de poser querendo pagar de gatinha 
dizendo que joga. 

(beijo prozinimigo,
tirei a foto porque tava 
me achando  poderosa
mesmo com o headphone novo.)


4 comentários:

  1. E eu sou muito seu fã por lembrar a mim que não precisa ser bom para ser gamer:) assim até eu me lembro do quanto alguns jogos me fascinam e eu por me achar ruim perco a diversão que é só *jogar*. Você é o máximo, Sarah! Obrigado pela lembrança do lúdico na vida:)

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    1. Eu que agradeço a presença. =)

      E é isso mesmo: não importa ser bom, o que importa é curtir a possibilidade de jogar.

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  2. Olá!!

    Eu sou muito ruim em jogos. Já fui derrotada por todos os meus amigos e fez a tal família (jogando Wii Sports Resorts) e eu nunca fechei nenhum jogo do Mário, apesar de adorá-lo.

    Eu não tenho senso de direção e isso fica claro quando estou jogando videogame. Sorte ter um mapa que mostra que você está indo para o lado errado. xD

    Curti seu blog, vou tentar acompanhá-lo sempre!!

    Até mais

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    1. Que bom que gostou do blog, sugestões e ideias são bem vindas sempre =)

      E o mapa no canto da tela... bom, ele é um dos lugares em que minha dificuldade de coordenar visão e ação motora se manifesta. E eu nem sabia dessa relação até recentemente. Passo oitenta vezes pelo mesmo lugar até decorar o cenário =P

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