segunda-feira, 20 de março de 2017

Neurodiversidade e personagens de RPG

Quase a totalidade dos meus personagens de RPG tem algum tipo de traço neurodivergente. Não é para ganhar pontos na ficha - estou interpretando um lobisomem que começou a história com a firme intenção de superar seus ferimentos* mentais e por isso não peguei os pontos de defeito, estou só fazendo pelo prazer da interpretação - e muitos sistemas nem preveem essas interações trocadas por pontos, e eu e outros players colocam isso na hstória do mesmo jeito. Pensando nos personagens que já fiz na vida, muitos deles tem algum elemento neurodivergente - ou como os neurotípicos costumam dizer, neuroatípicos.

Capacitismo e psicofobia é mato na nossa sociedade. Depois de uma vida sendo neurdiversa, sendo disgráfica e convivendo com crises depressivas, eu percebo isso de forma muito cotidiana (e reconhecendo meu absoluto privilégio comparado com pessoas que tem que lidar com coisas muito mais pesadas dentro desses elementos). Para mim, é natural que meus personagens sejam como eu sou. Do mesmo jeito que quero mesas de jogo onde existam mulheres e pessoas não binárias, que exista variedade étnica, que existam diferentes orientações sexuais, sinto a necessidade de personagens que tenham deficiências e questões mentais - e que isso não faça deles menos heróis.

Poxa, mas então você fica jogando com personagens parecidos com você? Nem sempre. Na real, na maioria das vezes eu busco personagens que não são nem um pouco como eu. O que eu faço é me pautar na minha experiência e na experiência das pessoas que conheço ou leio na internet para não cair em estereótipos e caricaturas. Não quero o malkaviano Coringa na minha mesa (e como narradora de vampiro, só libero malkav para quem eu sei que entende o que isso significa). Jogar com personagens neurodiversos exige um pouquinho de pesquisa, mas para mim, pesquisar para criar personagens é um prazer, e eu me afundo em sites de psicologia e livros que detalham minúcias do cenário com a mesma empolgação. Algumas coisas minhas sangram para o personagem? Assim como com todo mundo. Mas isso não invalida a experiência. As pessoas questionam quando seu personagem foge da norma em algo que você vivencia ou convive, mas não questionam quando ele repete padrões que são socialmente dominantes, mesmo que não sejam adequados ao personagem.

Porque incomoda as pessoas que um assunto tabu seja tratado com naturalidade.

Curiosamente, o que menos sangra entre eu e meus personagens são as questões mentais deles. O que sangra disso, na real, é essa sensação incrível de que podemos ser heróis da nossa história mesmo que nosso cérebro lute contra. Que podemos ser heróis e tornar elementos que a sociedade não aceita em nossos pontos fortes.

Então sim, meus personagens tem desvantagens mentais. Sim, isso vai fazer parte de como construo minhas histórias. E as vezes vou sim usar experiências minhas como laboratório. Porque é o que todo mundo faz, mesmo sem reparar. O personagem não é você. As vezes ele não tem nada de quem você é. Mas suas experiências vão afetar a interpretação. Do mesmo jeito que nosso jeito de pensar na atualidade vai influenciar o jeito como um personagem medieval age, as estruturas sociais excludentes que nos envolvem fazem perceber detalhes que tornam mais rica a interpretação de papéis.

Nunca vou fazer um personagem que é extremamente piadista por um motivo simples: eu tenho uma enorme dificuldade em entender piadas, e mais ainda em fazer piadas - existem dezenas de formas de fazer um personagem bem humorado sem depender de piadinhas. Na eventualidade de um personagem meu lidar com automutilação ele vai fazer isso se queimando ou qualquer outra coisa que não seja se cortar, porque eu tenho uma aflição terrível de cortes. Assim como não me vejo jogando com um personagem de extrema direita, porque isso me deixaria terrivelmente desconfortável. Assim como interpretar um personagem hetero é um esforço de interpretação - embora eu faça isso às vezes. Um dos personagens com que jogo agora tem fobia a toque. Quando fui pesquisar relatos de pessoas nessa condição, descobri que o que descrevem da sensação de ser tocado é parecido com o que eu sinto quando estou em uma crise de sobrecarga sensorial, o que foi uma coincidência peculiar que me permitiu que em uma cena onde ele descrevia o que sentia, eu soubesse o que dizer, mesmo que a experiência dele seja alienígena para mim, que sou uma pessoa de expressão física ao extremo.  

Nossa Sarah, outro personagem que lida com abuso de substâncias? Cara, eu sei que percentuais muito grandes da população vão passar por coisas do tipo na vida. Então para mim isso é um elemento comum o bastante para aparecer de diversas formas. E como eu jogo muito, e a muito tempo, colecionei personagens com essa característica - a porcentagem deles no todo dos meus personagens é um pouco menor do que seria em uma amostra populacional de verdade. Mas como é um elemento tabu, chama atenção.

Não se repara em quantos personagens hetero e brancos uma pessoa faz, porque essa é a norma. Não se repara que poderia estar fazendo a pergunta contrária: porque todos os meus personagens são neurotípicos? porque meus personagens não são hetero? porque eu jogo com o Brujah Iconoclasta e não o Idealista, porque meu mago age exatamente dentro dos tropos de magia que são repetidos à exaustão e não experimento algo diferente? 

A gente usa nossas experiências para construir nossos personagens. E quando eu decidi que contar a história de outro homem branco hetero e cis não me interessava, eu comecei a abrir meu olhar para permitir que outras histórias fossem contadas. Por uma questão de justiça social? Não, com toda sinceridade. Foi pelo prazer de ver outros jeitos de expressar o mundo. Foi para ser mais divertido e mais rico. Serve como laboratório para enriquecer as histórias de ficção que eu escrevo. Para eu me tornar mais empática. E para eu ver contadas as histórias não só de pessoas como eu, mas também as histórias de pessoas que passaram pela minha vida e são incríveis. Mas acima de tudo, o que torna prazeiroso para mim jogar RPG é a quantidade infinita de histórias que existem para ser contadas.

E cada pessoa tem a possibilidade de trazer histórias únicas para a narração coletiva. Então sim, eu dou voz a essas histórias. Cada um de nós dá voz para as histórias a que está familiarizado. A gente só não se dá conta disso. Meu mundo é um mundo colorido e cheio de gente que foge do normativo. Então vamos explorar isso.









imagem: Moira, minha personagem de Shadowrun, fusora elfa que tem acumulado histórias bem peculiares nesses anos todos de jogo e que com crises depressivas ou sem elas vai chutar bundas e arranjar encrenca com poderes maiores do que ela poderia lidar - e sobreviver para contar a história.


* usei o termo ferimento mental por causa de um texto muito bacana que li uma vez sobre um cara do exército canadense que trabalhava com soldados que sofriam de stress pós traumático. Ele dizia que era muito diferente encarar o TEPT/PTSD como um ferimento de guerra como qualquer outro ferimento físico ou como doença, e que isso influenciava na forma como os soldados conseguiam superar essa vivência. Não é difícil acompanhar o raciocínio disso, e adotei a ideia de que meu personagem vê os distúrbios que sua vida como guerreiro trouxeram como uma cicatriz de batalha, ainda que invisível. Tinha lido a respeito em outro contexto (uma leitura casual), mas trazer essa referência para a construção do personagem foi bem legal.