segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

RPG e aprendizados

Kira, personagem icônica de Pathfinder
O RPG é a única constante da minha vida desde os 13 anos de idade. Tudo o mais já apareceu, sumiu, transmutou. O RPG permanece. E porque o RPG é essa coisa tão fantástica?

Caso alguém chegue aqui sem saber o que é RPG, além de reeducação postural global e rocket propulsion grenade, eu estou falando de "pen and paper" ou RPG de mesa, Role Playing Game, Jogo de Interpretação de Papéis.

Um bando de gente em volta de uma mesa (na verdade aqui nós jogamos nos sofás da varanda), fazendo improvisação teatral a partir de planilhas com os pontos fortes e fracos dos personagens criados, vivendo histórias em outros mundos dos mais variados temas.

Acho que o mais bacana do jogo é ser cooperativo e de criação coletiva. Quando seu tanker se arremessa contra o boss e toma tiro até na alma para que o coleguinha derrube ele e salve o mundo, você sabe que aprendeu alguma coisa. O jogo é muito didático, e do melhor jeito: sem ter a menor intenção disso.

Não adianta: as coisas que a gente aprende de verdade são as que vem com a experiência. Seja a experiência vivida ou a compartilhada, muito mais eficiente do que explicar algo é vivenciar.

Nas minhas mesas de jogo adolescentes, colocávamos em pauta todos os assuntos que nos assustavam. Aborto, gravidez indesejada, consumo abusivo de drogas e álcool, miséria, da morte do cachorro à opressão dos trabalhadores e a luta de classes, tudo passou por rodadas de refrigerante barato, pipoca e risadas nervosas, sem a menor intenção moral ou didática. Era simples: eu era narradora de Vampiro, que trabalha com "horror pessoal". É claro que eu ia usar os temas mais desconfortáveis para cada jogador. Jogávamos Lobisomem o Apocalipse, que é um jogo ecológico, e óbvio que isso ia abrindo percepções. Jogando D&D, lidávamos com conceitos de moralidade de outras épocas e de visões do papel da mulher.

Fiquei adulta, os grupos de jogo foram mudando, algumas pessoas permaneceram, outras seguiram seus caminhos, mas o tema dos jogos também se adensou. As risadas são muito maiores agora, que somos todos um bando de velhos irônicos. A qualidade da comida melhorou e o número de maços de cigarro em cima da mesa aumentou. Precisamos aprender a dobrar agendas para fazer as sessões de jogo acontecerem, e a tirar o filho de perto quando o tema do jogo está pesado demais.

Mas continuamos aprendendo e nos envolvendo nas tramas. Com um plus.

Minha mesa de jogo é composta por um monte de professores. Nem todos são da área, mas é a maior porcentagem. Curioso que entre todo mundo que eu conheço que jogava RPG na adolescência, muita gente virou professor, se não em tempo integral, pelo menos dando umas aulas livres por ai.

Porque a natureza do RPG está lá na contação de histórias, a forma natural de aprendizagem do ser humano, e por isso professores que jogam RPG manjam dos paranauês do ensino de uma forma orgânica.

O uso do RPG na educação não é novidade pra ninguém. Mas eu acredito que o mais produtivo não é o jogo preparado para passar um conteúdo, e sim as situações que naturalmente surgem nas mesas de jogo. Colocar um grupo para jogar significa pesquisa, discussão, análise, desenvolvimento de estruturas narrativas, conceituação estética, noções de ética, criação de personagens, interpretação...

Mas ai nós temos um outro problema. O problema de que começar do conhecimento que o grupo já tem não basta. Porque rpgistas estão inseridos na sua sociedade: são cheios de atitudes e postaras machistas, homofóbicas, gordofóbicas, imaturas e estão inseridos em uma sociedade alienante. E o que pode ser transformador em um grupo pode ser só reprodução do status quo em outro.

E ai vem o nosso papel como jogadores: o que eu trago para a mesa de jogo?

O que está fora da minha zona de conforto e que eu posso incluir no meu personagem? Quantos personagens não brancos tem na mesa? Quantas mulheres? Quando eu sou o mestre, como eu descrevo conceitos de beleza?

Na minha mesa de jogo, questionamentos ligados à homofobia e preconceito religioso são frequentes. Porque essa é nossa bagagem: um pouco queer, um pouco pagã, reproduzimos nossos questionamentos. Quando um homem cis e hetero faz uma personagem travesti que não é uma caricatura e meu personagem começa a se policiar para não tratar ela no masculino, ou quando um lobisomem é declaradamente homossexual e um dos personagens precisa defender ele diante da sociedade garou, ou quando os personagens decidem que só resta rezar e um personagem ateu clama pelo Monstro do Espagueti Voador, a gente muda um tiquinho que seja os paradigmas de todo mundo envolvido no jogo.Inclusive nas nossas piadas.

Mas até recentemente, meus personagens eram todos brancos. Falha minha. Auto análise, percepção do discurso, e eu comecei a mudar isso. Minha personagem de Shadowrun é uma elfa - mas ela não é uma caucasiana platinada, é uma Navajo. Super dentro do contexto do cenário, onde nativos americanos são uma potência fortíssima no jogo de poderes, e mesmo assim, quedê personagens jogadores indígenas? (Pontos para Pathfinder, que fica devendo no tratamento de imagens femininas, mas tem etnias e orientações sexuais variadíssimas - e personagens femininas não estereotipadas, pena que os desenhistas ainda não absorveram os conceitos do jogo).



Ah, mas é para transformar a mesa de jogo em território ativista?

Não, filhão. É só assumir que viver é um ato político. E por trás das nossas escolhas óbvias, tem algo ali, escondidinho. Uma vida inteira de cultura pop enfiando noções na nossa cabeça. E nós não precisamos reproduzir isso.

Acima de tudo: dá para enriquecer os personagens e o cenário e isso torna o jogo mais divertido, porque menos óbvio.



Não estou dizendo que tudo é as mil maravilhas. Como eu disse, mesmo sendo a única mulher na mesa a maior parte da vida e botando meu feminismo na discussão porque ele é intrínseco a mim, já fiz muita escrotice estereotipada. E não vou queimar na fogueira isso - meus personagens brancos caucasianos de olhos azuis tinham um motivo para estar lá, que tinha muito a ver com o white washing que somos submetidos. Mas quando eu decidi que minha personagem seria dineh, e eu tive que descobrir que os najavo se autodenominam dineh, eu me diverti mais, aprendi um teco de coisas e dei mais profundidade pro meu jogo, tornando ele muito mais rico.

Então, se você joga RPG, diz ai. O quanto você se permite sair da sua zona de conforto?





na imagem - Kira, clériga icônica de Pathfinder, badass até a medula como todos os icônicos, lésbica, não caucasiana e com uma roupa adequada para quem está em combate.

4 comentários:

  1. Poxa moça, deu até vontade de jogar RPG depois de ler isso

    E tô gostando dos textos, estão muito bons!

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    1. Fico muito feliz =D tanto por despertar sua vontade quanto por estar gostando dos textos.

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  2. Minhas duas últimas personagens foram as mais divertidas de criar. Ambas de D&D. O primeiro era um druida de idade avançada e hipocondríaco, o que refletia nas suas especializações em herbalismo. Uma pena que não joguei muito com ele. E a outra uma batedora da tribo do guepardo do Shaar, de Forgotten Realms, iniciada de Shaundakul, deus dos ventos. Queria que ela tivesse mais consistência, então li um pouco sobre a lingua swahili pra dar mais algumas características interessantes à ela. Por questões culturais não fazia sentido a habilidade de afastar mortos-vivos, que foi substituída por banimento planar (habilidade alternativa para clérigos e paladinos, de acordo com o Planar Handbook, se não me engano). Também, por questões culturais, não fazia sentido ela utilizar armaduras, e outras questões envolvendo equipamentos. Enfim, a personagem parecia muito mais coesa quando não se pensava em números e bônus proporcionados por itens, por exemplo. Acho que foi a primeira personagem mulher que interpretei num jogo de rpg.

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    1. " a personagem parecia muito mais coesa quando não se pensava em números e bônus proporcionados por itens, por exemplo"

      Falou TUDO.

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